segunda-feira, janeiro 02, 2006

Muriel - Ruy Belo

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serranos
ensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templo
se que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

sexta-feira, setembro 09, 2005

Somewhere

Dança o sol por trás das nuvens.
Mas o céu insiste em chorar.

Estilhaços

Tirei os estilhaços, um a um, mas o coração insiste em não bater. Afago-o com as minhas mãos quentes. Quero passar-lhes a vida que tenho em mim.

Nuvem

Na nuvem mais alta, vejo-te.
As lágrimas correm pela minha cara e fazem chover.
Queria levar-te para um sitio de sol.
Mão na mão.
Só nós os dois.
E aí poder amar-te sem limites, sem barreiras.

Quero descer.
Não quero viver no sol sem ti.
Tragam-me uma escada que me leve de volta ao mundo,
Ao pé de ti.

terça-feira, agosto 23, 2005

E assim ardeu a minha cidade....



Anjo do Desespero - Heiner Müller

Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. A minha esperaça é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o caixão. Eu sou aquele que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã

sexta-feira, julho 22, 2005

Há-de Flutura Uma Cidade No Crepúsculo da Vida

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a luz do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pusava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentado à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade.


Al Berto

quarta-feira, julho 20, 2005

Descoberta

Queria descobrir o mundo inteiro dentro dos teus olhos,
Ver o mar,
Pisar a terra.
Descobrir nas tuas mãos a vertigem do precipicio.
E sentir na tua pele a doce melodia das aves nocturnas.

segunda-feira, julho 18, 2005

Labirintos

Procuro umas mãos que me guiem
No labirinto de sombra e esquecimento
Entre paredes feitas de água e vento.

Quero-te com a incerteza profunda do voo dos pássaros
Quero-te assim, de mão na minha percorrendo a vida
Sem certezas, sem destinos.

Só encontro mãos vagas, feitas de fumo
Que me guiam pelos caminhos estreitos
Da escória da vida.

Quando me vens pegar pela mão
E levar-me para longe daqui,
Para o meio do mar,
Entre ondas brancas e céus azuis?

Quando me vais levar pelo caminho certo?

To you...

sexta-feira, julho 15, 2005

Sen

Já não te consigo acompanhar. Espera por mim tempo ingrato. Porque corres sempre veloz e exacto. Hoje não quero, não quero mais. Quero parar e olhar as flores e ouvir o canto dos pássaros. Vai, podes correr que eu vou ficar. Hoje não te quero seguir. Hoje não quero que mandes em mim. Quero sentir o que é a liberdade de não ter de ser exacto. De poder para se me apetecer. Vai, corre que o mundo precisa de ti. Mas não contes comigo, hoje não. Hoje vou ser mais um relógio atrasado.

Elegia

Há um lugar vazio ao meu lado
Preenchido apenas pela recordação do teu olhar doce
Pela memória do sal da tua pele
Renasces de uma rosa feita sol
De um olhar feito mar

Sabes-me

Uma lágrima cai do teu rosto
Sabe a sal e solidão
Sabe a dis de sol e chuvas de inverno
Sabe a ti e sabe a mim
Sabe a um mundo de palavras indiziveis
Sabe-me a dor e alegria